"O pecado original", dizem. Desobedecer à única proibição que existia.
Em vez de ser grata, debochar da harmonia do ambiente.
Ser aquela que perturba a paz.
É assim que a mulher cristã se sente ao longo de toda a sua vida.
Crescer sob o peso do cristianismo é ser ensinada que sua existência é um peso.
Que o mundo funcionaria em perfeita harmonia sem você - sem seus "surtos", seus ciclos emocionais, sua necessidade de expressar euforia, desgosto, e, sobretudo, prazer.
O mundo feito de homens para homens funciona sempre igual. Acordar, trabalhar, descansar sempre no mesmo horário. Nem os ciclos hormonais intensos, nem as alterações climáticas que ditam o rumo do dia, nem a natureza imprevisível das crianças podem perturbá-lo.
Então, vem a mulher. Com suas necessidades psicológicas, seu diálogo profundo. Seu entendimento de que o mundo doméstico não está totalmente sob controle - basta uma chuva forte para que muitos planos precisem ser refeitos.
Vem a mulher com "seus" filhos, seu corpo radicalmente modificado para dar origem a eles. E a ausência de sono, o choro noturno. As fraldas e as roupas que não servem mais, o riso espontâneo que logo ganha dentes. A beleza em tudo isso que é totalmente imprevisível.
E o homem se incomoda. A mulher é aquela que perturba sua paz.
Por isso, é ensinada a calar-se. Ser submissa.
É essa a vontade de um deus que não tolera os ciclos, as emoções, as vontades da mulher.
A espontaneidade feminina é reprovada por aquele deus. A busca feminina pelo prazer é condenada.
A busca pelo conhecimento, no fruto proibido, é condenada. O correto é viver sem conhecer, é conformar-se. Não desejar.
A mulher cristã se reconhece como aquela que perturba a paz. Tanto pela sua natureza cíclica, como, pior do que isso! Aquela que perturba a paz pela sua vontade. Por ousar desejar.
Essa é a armadilha de Eva. Carregamos a culpa pelo tal "pecado original", e também sabemos que perturbamos a paz do mundo.
Ou melhor, do mundo dos homens.
Como se a vida sem a mulher fosse de perfeita retidão. Estabilidade. Ordem e progresso.
Como se pudesse haver vida sem a mulher.
A busca espiritual da mulher não pode compactuar com a armadilha de Eva. Porque onde não há espaço para a mulher, ela não deve permanecer.
Permanecer em espaços onde não cabemos é violência. E a cura dessa violência está em não aceitarmos ser vistas como incômodo ou perturbação. Em reconhecer que não
A mulher é exatamente quem precisa ser. Suas atitudes, suas emoções, seus ciclos, seu jeito de ser imprevisível. Tudo isso é poder.
Não precisamos seguir aquilo que o homem definiu como poder. Ser mulher também é poder. E é no seu desejo, na sua curiosidade, na sua busca por conhecimento, que está o seu poder interior.
Não deixe que o seu poder seja perturbado pelo homem.
O conceito de poder interior estimula o orgulho saudável, não o anonimato recatado; a alegria em relação à nossa força, não vergonha e culpa.*
Liberte-se, mulher.
Você não é Eva. Você não deve nada a Eva.
Mesmo porque Eva nunca existiu. Foi inventada pelos homens para te convencer de que a vida seria melhor sem você.
Liberte-se dessa armadilha.
* STARHAWK. A dança cósmica das feiticeiras - guia de rituais à Grande Deusa. Rio de Janeiro: Record, 1993, p. 72.